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Informe e Crítica

6 de ago. de 2011

A Sociologia do Filme de Dieter Prokop


A SOCIOLOGIA DO FILME DE DIETER PROKOP

Nildo Viana*
Resumo:
O artigo apresenta uma exposição e crítica da sociologia do filme de Dieter Prokop. A partir da idéia de indústria cultural desenvolvida pela Escola de Frankfurt, o sociólogo alemão discute o cinema a partir da idéia de “condições estruturais”, principalmente a indústria cinematográfica, para analisar a história do cinema, e realiza interpretações e análises de filmes. A sua crítica de Kracauer e da escola funcionalista é bem fundamentada. A contribuição de Prokop, no entanto, não está isenta de limites e pontos problemáticos, o que também é analisado, mostrando suas contradições e aspectos questionáveis. Neste sentido, é questionado as bases de sua análise, cujo esquema analítico não consegue perceber as contradições e brechas do capital cinematográfico, o problema de sua conceituação de esfera pública e sua concepção de “consciência de massa”. A sua interpretação de Griffith também é questionada, devido ao fetichismo da técnica e outros problemas.
Palavras-Chave: Capital Cinematográfico, Cinema, Sociologia do Cinema, Prokop.

Abstract:
The article presents a critical exposition and of the sociology of the film of Dieter Prokop. From the idea of cultural industry developed by the School of Frankfurt, the German sociologist argues the cinema from the idea of “structural conditions”, mainly the cinematographic industry, to analyze the history of the cinema, and carries through interpretations and analyses of films. Its critical one of Kracauer and the funcionalista school well is based. The contribution of Prokop, however, is not exempt of problematic limits and points, what also it is analyzed, showing to its contradictions and questionable aspects. In this direction, it is questioned the bases of its analysis, whose analytical project does not obtain to perceive the contradictions and breaches of the cinematographic capital, the problem of its conceptualization of public sphere and its conception of “mass conscience”. Its interpretation of Griffith also is questioned, had to the fetichism of the technique and other problems.
Key-words:  Cinematographic capital, Movie, Sociology of the Movie, Prokop.


*   Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília; e autor dos livros “A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte (Porto Alegre, Zouk, 2007); “Os Valores na Sociedade Moderna” (Brasília, Thesaurus, 2007); “O Capitalismo na Era da Acumulação Integral” (São Paulo, Idéias e Letras, 2009); “Como Assistir um Filme?” (Rio de Janeiro, Corifeu, 2009); “A Concepção Materialista da História do Cinema” (Porto Alegre, Asterisco, 2009).
A Sociologia Do Filme de Prokop





Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Sociologia do Filme de Dieter Prokop. Ciências Humanas – Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia Seses. Vol. 02, n. 05, 08-27, jan./jun. 2011.

11 de jun. de 2011

Materialismo Histórico e História do Cinema

Karl Marx, Karl Korsch, Paul Mattick, Anton Pannekoek

MATERIALISMO HISTÓRICO E HISTÓRIA DO CINEMA

Nildo Viana

Resumo

A historiografia tradicional do cinema é descritiva e pouco contribui para um entendimento das mutações do processo de produção dos filmes e dos conteúdos veiculados por eles. Os poucos estudos de orientação marxista sobre o cinema padecem de problemas metodológicos e teóricos devido à influência da teoria do reflexo de Lênin e da estética realista dela derivada. O materialismo histórico assume, portanto, um papel fundamental para ultrapassar tantos os limites da historiografia tradicional do cinema quanto as contribuições pretensamente marxistas nesta área. As categorias de totalidade e determinação fundamental e os conceitos de capitalismo, luta de classes, ideologia, entre outros, são a chave para a produção de uma reconstituição histórica do cinema tendo por base o materialismo histórico.

PALAVRAS-CHAVE-: história do cinema, materialismo histórico, filme, totalidade, ideologia.

Para acessar este artigo, clique aqui.


Abstract:

The traditional historiography of the movies is descriptive and little contributes to an understanding of the mutations of the process of production of the films and of the contents transmitted by them. The few studies of Marxist orientation on the movies suffer of methodological and theoretical problems due to influence of the theory of the reflex of Lênin and of her derived realistic aesthetics. The historical materialism assumes, therefore, a fundamental paper to surpass so many the limits of the traditional historiography of the movies as the contributions supposedly Marxists in this area. The totality categories and fundamental determination and the concepts of capitalism, fight of classes, capital accumulation, ideology, among other, they are the key for the production of a rebuilding history of the movies tends for base the historical materialism.

Word-keys: History of the Movies, Historical Materialism, film, totality, Ideology.

14 de mai. de 2011

II Mostra Cinema e Esportes


II MOSTRA DE CINEMA E ESPORTES19 a 21 de maio
Horário: 14 horas
Local: Museu Antropológico da UFG
Av. Univeristária, n. 1166, Setor Universitário

PROGRAMAÇÃO

19/05 (quinta-feira) - Perseguindo um sonho
Debatedor: Nildo Viana

20/05 (sexta-feira) - O Faixa-preta
Debatedor: Marcel Farias de Souza

21/05 (sábado) - Ping-pong na Mongólia
Debatedor: Cleber Dias

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2 de abr. de 2011

Capitalismo e Cinema

Charles Chaplin, "Tempos Modernos",
a engrenagem capitalista e a subordinação do trabalhador

Capitalismo e Cinema*

Nildo Viana**

A relação entre cinema e capitalismo pode ser observada por vários aspectos. O primeiro aspecto seria a percepção de que o cinema é um produto do capitalismo e isto está ligado ao processo de discussão sobre os meios oligopolistas de comunicação, tal como é destacado por alguns autores[1]. Outro aspecto é como o capitalismo é reproduzido no cinema, ou seja, como os filmes reproduzem as relações sociais do capitalismo, em aspectos mais particulares ou mais amplos. Assim, o capitalismo produz o cinema e o cinema reproduz o capitalismo e, dependendo do que se focaliza, irá se privilegiar o processo social de constituição do cinema e das produções cinematográficas ou a produção fílmica em si. Abordaremos brevemente estes dois aspectos.

O Capital Cinematográfico, ou a Produção Capitalista do Cinema.

A forma de abordar a questão do cinema enquanto um processo de produção cultural sempre remete aos termos “indústria cultural” e “indústria cinematográfica”. Estes termos, no entanto, são problemáticos, pois a idéia de indústria é relativamente “neutra”, focando mais a forma do que os elementos essenciais do processo de produção, que é capitalista. O mais adequado é trabalhar com os conceitos de capital comunicacional (Viana, 2008) e capital cinematográfico (Viana, 2009a). O capital cinematográfico é muito pouco compreendido, assim como a chamada “indústria cultural” em geral. Existem duas concepções da indústria cultural que influenciam a concepção referente ao capital cinematográfico, chamado como “indústria cinematográfica”.
A primeira concepção é apologética, caracterizada por buscar exaltá-la e colocar que ela é expressão do público ou da realidade; a segunda concepção é chamada por alguns de “apocalíptica”, e se caracteriza por considerar a “indústria cultural” como um sistema de dominação ligado aos interesses capitalistas. Ambas as concepções são equivocadas, embora a última esteja mais próxima da realidade.
Sem dúvida, o capital comunicacional reproduz os valores e concepções dominantes e visa o lucro acima de qualquer outra coisa. No entanto, existem contradições no interior dão capital comunicacional. Além dele não poder controlar tudo o tempo todo, ele precisa garantir o lucro. A concepção por detrás da produção cinematográfica tem uma importância menor que a necessidade do lucro. Por isso, o capital comunicacional produz e divulga filmes, obras de arte, livros, etc., que são contrários aos interesses, valores, concepções do capitalismo. Por isso existe a possibilidade de produção crítica no interior do capital comunicacional.
Isto vale também para o capital cinematográfico. Se existe público para filmes críticos, então ela irá produzir tais filmes. Mas os filmes intencionalmente críticos são poucos, pois não existe público tão grande assim para tais produções. Além disso, os cineastas e agentes da produção cinematográfica podem fazer grandes obras utilizando metáforas, sátiras, etc., e não ser percebido pelos dirigentes do capital cinematográfico, que observarão apenas o retorno financeiro da produção (ou, no caso de alguns, apenas seus aspectos técnicos ou a recepção do público). Por último, cabe destacar que muitos produzem filmes que podem ser interpretados como crítica do capitalismo sem que os seus produtores tivessem a menor intenção disto.
Assim, o capital cinematográfico não se esquiva de seguir o modelo capitalista e buscar o lucro, mas suas contradições possibilitam esta produção crítica. Isto é tão verdadeiro que até mesmo o capital cinematográfico é objeto de críticas por parte de filmes, inclusive hollywoodianos. Podemos citar, neste contexto, alguns filmes que realizam tal crítica do capital cinematográfico: Belíssima, Luchino Visconti (Itália, 1951); O Dia do Gafanhoto, de John Schlesinger (EUA, 1975), O Mundo Proibido, Ralph Bakshi (EUA, 1992); Cecil Bem Demente; John Waters (EUA, 2000), e, principalmente, uma das grandes obras do cinema de todos os tempos: O Crepúsculo dos Deuses, Billy Wilder (EUA, 1950), a mais bem feita crítica a Hollywood.

A Reprodução Fílmica do Capitalismo, ou o Capitalismo na Tela

Existem várias formas de reprodução fílmica do capitalismo, isto é, a reprodução do capitalismo através do cinema. Podemos destacar, em primeiro lugar, o filme como reconstituição histórica inintencional, ou seja, o filme, mesmo que seus produtores não tenham a intenção, acaba reconstituindo a história de sua época, ou seja, de determinado momento da sociedade capitalista. Porém, esta reconstituição histórica inintencional é feita sob variadas perspectivas, dependendo da época, agentes de produção e outros elementos envolvidos em determinada produção cinematográfica. Outra forma é o filme que intencionalmente pretende revelar elementos da sociedade capitalista. Este tipo de filme é mais raro e é, geralmente, mais crítico e forte. Os seus agentes de produção tentam expressar as relações sociais na sociedade capitalista e ao fazê-lo, revelam seus problemas, contradições, limitações, conseqüências. Outra forma de mostrar o capitalismo através do cinema é por intermédio da própria história do cinema, isto é, através da sucessão de filmes que assumem determinadas características, valores, posições, que são típicos da época e são determinados pela lógica do desenvolvimento capitalista.
No entanto, uma coisa é a intencionalidade dos agentes de produção do cinema, outra coisa é a interpretação e significação que o público, os críticos e pesquisadores fazem[2]. Um filme produzido por quem não tem a menor intencionalidade crítica ou de abordar o capitalismo pode ser considerado, pelo intérprete, como uma metáfora do capitalismo. A proliferação de filmes de ficção científica que retratam um futuro sombrio, pode ser interpretada como apenas uma manifestação ficcional da realidade atual, isto é, do capitalismo. Isto decorre do fato de que o material (a trama), os elementos constitutivos, a tecnologia e seu processo de produção, e os agentes da produção (o diretor, os roteiristas e toda a equipe de produção) respiram o capitalismo e são produtos do capitalismo, e, assim, o que fazem em matéria de ficção é transportar a realidade da sociedade capitalista para uma outra realidade que é sua reprodução sob outra forma. Até nos filmes históricos, que buscam retratar outras épocas, a marca da sociedade capitalista está presente, embora as roupas estejam fora de moda, as questões de fundo são as da sociedade capitalista ou as da época interpretadas e apresentadas da perspectiva de alguém que vive no capitalismo e não consegue escapar das determinações oriundas disso.
Em síntese, existe uma diversidade de formas de reproduzir o capitalismo no cinema, seja focalizando o processo de trabalho, a vida dos trabalhadores, o desemprego, seja focalizando as instituições, valores, efeitos psíquicos, da sociedade capitalista. É possível uma reprodução da totalidade ou dos aspectos fundamentais do capitalismo, como também de aspectos secundários ou aparentemente desligados de seus elementos mais determinantes.

O Capitalismo no Cinema sob a Forma Naturalizante

O capitalismo pode ser abordado sob várias formas no cinema. A mais comum é a descritiva, isto é, o tipo de produção que apenas reproduz a sociedade existente. Se tal descrição revela os seus problemas sociais, então assume um caráter que pode ser considerado com intenção crítica; caso contrário, se focaliza questões isoladas em si mesmas ou mesmo sem grande relevância social, ou apenas retrata a sociedade burguesa como algo natural, então assume a feição apologética com caráter naturalizante. O caráter descritivo significa que as posições daqueles que fazem a descrição não são explícitas, são ocultadas, de tal forma que aparenta uma neutralidade, o que, na verdade, não existe. Reproduzir a miséria dos trabalhadores em um filme é mera descrição e isto pode ser considerado de diversas formas (mas aqui o problema é da interpretação e não da mensagem enviada), mas os produtores do filme tinham uma intencionalidade, que poderia ser mostrar a situação precária de vida, naturalizar a miséria, denunciar a superexploração.
Em cada uma dessas opções, há uma perspectiva de classe e uma concepção do fenômeno, inclusive posição política, não necessariamente partidária (ligada a partido político, embora isso também ocorra com bastante freqüência). Aqueles que querem denunciar a superexploração dos trabalhadores são os que estão preocupados com o “excesso” e querem que alguém, o governo, por exemplo, tome alguma providência. Já os que, de forma malthusiana, querem naturalizar, querem apenas dizer que a vida é assim mesmo e por isso é preciso ver esta realidade e deixá-la de lado, pois é preciso se preocupar com outras coisas. Os que querem mostrar a situação precária de vida dos trabalhadores, apenas se contentam em dizer que as coisas estão erradas e que talvez seja preciso mais “humanismo”, mais “filantropia”, mais “políticas sociais”. Diferente é um filme que vai além da descrição, que mostra o questionamento, ou seja, um caráter crítico, e aponta para a necessidade e a possibilidade de transformação social. Desta forma, há a descrição pretensamente crítica e a apologética.
Podemos citar como exemplo do primeiro caso os filmes do chamado “neo-realismo italiano”, tal como os filmes de Luchino Visconti (Terra Treme, 1948; Rocco e seus Irmãos, 1960), Roberto Rossellini (Roma, Cidade Aberta, 1945), Vittorio de Sica (Ladrões de Bicicleta, 1948), Giuseppe de Santis (Arroz Amargo, 1948), entre outros. O neo-realismo foi aceito entusiasticamente por diversos setores da intelectualidade e da esquerda, mas posteriormente alguns começaram a perceber as limitações destes filmes, que não ultrapassam a realidade existente, não apontando para uma crítica mais efetiva e para a concepção da possibilidade de transformação social. A perspectiva de classe por detrás desta produção cinematográfica não era proletária e sim ligada às classes auxiliares da burguesia, unindo interesses de setores da produção cinematográfica com setores político-partidários, tal como o PCI – Partido Comunista Italiano.
O segundo tipo de filme é o mais comum e é constante nas grandes produções hollywoodianas, tal como os filmes de ação que pregam a hegemonia mundial norte-americana, bem com outros filmes que naturalizam as relações sociais existentes em nossa sociedade, tal como Love Story, Arthur Hiller (EUA, 1970) ou Wind – A Força dos Ventos, Carroll Ballard (EUA, 1992). O primeiro faz apologia do amor romântico e o torna o centro da vida humana; o segundo coloca a competição (uma das características fundamentais das relações sociais capitalistas e da mentalidade produzida por elas) como centro da história e a vitória como o objetivo fundamental a ser conquistado.
Porém, existem outras formas de reprodução fílmica do capitalismo. Há também os filmes que retratam momentos históricos específicos, tal como os filmes mudos de Serguei Eisenstein (O Encouraçado Potemkim, URSS, 1925; A Greve, URSS, 1924; Outubro, URSS, 1928) e vários outros que surgiram colocando situações sociais sob a forma de ficção ou utilizando acontecimentos históricos como base para a produção cinematográfica[3].

A Crítica do Capitalismo no Cinema

A forma mais importante, no entanto, é aquela que ultrapassa o nível da descrição e deixa explícito o posicionamento dos agentes de produção. É aquela que não é naturalizante e sim crítica. Este é o caso dos filmes produzidos na Alemanha, ainda durante o cinema mudo, principalmente os filmes expressionistas. Destacaríamos, deste período, entre outros, Metrópolis, Fritz Lang, (Alemanha, 1927); Tartufo, F. Murnau (Alemanha, 1926); O Gabinete do Doutor Galigari, Robert Wiene, (Alemanha, 1920), apesar deste último ter seu final e início deformado pelo diretor. Também é o caso do realismo poético francês dos anos 30, tal como os filmes de René Clair (principalmente A Nós a Liberdade, França, 1931) e os de Jean Renoir (principalmente A Regra do Jogo, França, 1936). É claro que o momento histórico e o caráter incipiente do capital cinematográfico da época facilitavam a produção destas obras. Os filmes do cineasta surrealista Luis Buñuel também merecem ser citados neste contexto, tal como Anjo Exterminador (México, 1962), entre outros. Os filmes do Western Spaghetti, de Sérgio Leone, Sérgio Corbucci e Damiani Damiano são outros exemplos. Alguns focalizam a expansão capitalista nos Estados Unidos, mas a maioria toma a Revolução Mexicana e a luta dos trabalhadores contra a tirania dos governos mexicanos.
Há também os filmes de terror de George Romero, tal como A Máscara do Terror (França/Canadá/EUA, 2000) e seus filmes de zumbis e, inclusive, filmes dirigidos por outros cineastas que são hollywoodianos e desprezados por isso, mas focalizam aspectos da sociedade capitalista de forma crítica, tal como A Coisa, Larry Cohen (EUA, 1985) e Corrosão – Ameaça em seu Corpo, Phillip Brophy (Austrália, 1993), entre outros. Inclusive antigos filmes B, como A Pequena Loja dos Horrores, Roger Corman (EUA, 1960) e ainda alguns filmes de ficção científica dos anos 50 sempre colocando os perigos da radioatividade e da ambição capitalista que gera o seu uso indiscriminado. Assim, os filmes de ficção científica, muitas vezes desprezados, tal como os de terror, revelam aspectos essenciais da sociedade capitalista. Vários filmes poderiam ser citados neste sentido como Matrix, Andy e Larry Wachowski (EUA, 1999); Mad Max, George Miller (Austrália, 1979); Rebelião no Século 21, Charles Band (EUA, 1990). Entre os filmes de terror, além dos de George Romero, há os dirigidos por John Carpenter, tal como Eles Vivem (EUA, 1988); Christine – O Carro Assassino (EUA, 1983); Pesadelo Mortal (EUA, 2005), que avançam na crítica do capitalismo e alguns filmes fantásticos, como Momo e o Senhor do Tempo, Johannes Schaaf (Alemanha, 1986), O Fabuloso Mundo de Billy Liar, John Schlesinger (Inglaterra, 1963); Donnie Darko, Richard Kelly (EUA, 2001), poderiam ser citados[4]. Isto quer dizer, em poucas palavras, que não são apenas os filmes “realistas” ou os dramas, que reproduzem a sociedade capitalista ou seus aspectos, ou mesmo que realizam a sua crítica, pois a ficção científica, o terror, o fantástico, o faroeste[5], também o fazem.
Sem dúvida, muitos outros poderiam ser citados, tal como os filmes políticos de Costa-Gravas e de Elia Kazan. Até alguns filmes infantis poderiam ser citados, como Formiguinha Z, Eric Darnell e Tim Johnson (EUA, 1998), História Sem Fim, Wolfgang Petersen (Alemanha, 1988). Também os filmes que abordam instituições e relações sociais específicas do capitalismo, como A Sociedade dos Poetas Mortos, Peter Weir, (EUA, 1989) e Um Estranho no Ninho, Milos Forman (EUA, 1975) no qual se aborda a educação autoritária e o hospício, respectivamente, contribuem com uma concepção do caráter da sociedade moderna. Uma série de filmes recentes aborda questões atuais do capitalismo: Clube da Luta, David Fincher (EUA, 1999), O Show de Truman – O Show da Vida, Peter Weir (EUA, 1998); V de Vingança, James McTeigue (EUA/Inglaterra/Alemanha, 2005), entre outros.
Obviamente que alguns filmes se destacam por reconstituir o capitalismo de forma mais crítica e ampla, tal como é o caso de Momo e o Senhor do Tempo; A Nós a Liberdade; Quando Explode a Vingança, Sérgio Leone (Itália, 1972), entre outros. O filme Momo e o Senhor do Tempo mostra não só como o capitalismo extrai o tempo dos indivíduos até a exaustão, como também como subverte os valores, abole a comunicação entre os seres humanos e corrompe os indivíduos. Já o filme A Nós a Liberdade mostra o caráter destrutivo do trabalho alienado, da prisão e da escola, além também de opor valores antagônicos e outros aspectos da sociedade capitalista.
Em síntese, existe uma diversidade de filmes sobre o capitalismo. Seja focalizando o processo de trabalho, a vida dos trabalhadores, o desemprego, seja focalizando as instituições, valores, efeitos psíquicos, da sociedade capitalista. Há diversos filmes sobre acontecimentos históricos, sobre juventude, sobre meios oligopolistas de comunicação, sobre guerra, sobre destruição psíquica dos indivíduos, sobre meio ambiente, entre inúmeras outras questões sociais importantes em nossa época.
No entanto, apesar disso, a formação cultural e a não-reflexão faz com que muitos filmes não sejam percebidos como realmente são, ou não percebendo o que ele mostra. Isto, em parte, é derivado da forma de assistência contemplativa, mecânica ou formalista que grande parte dos assistentes realiza das obras cinematográficas (Viana, 2009c). Isto é reforçado pelo preconceito e o elitismo cultural de muitos analistas e críticos do cinema. O material fílmico existente traz uma multiplicidade de possibilidades de análise da sociedade capitalista, desde que se supere as formas prejudiciais de assistência, para o caso dos que não são pesquisadores do cinema, ou que se supere as análises limitadas que são produzidas por muitos pesquisadores embasados em concepções ideológicas ou no mero descritivismo pobre, que é dominante. Ou seja, é preciso, no caso da assistência cotidiana, de uma assistência crítica e, no caso de pesquisadores, possuir recursos teórico-metodológicos adequados para realizar a análise fílmica. O capitalismo está no filme, enxerguem ou não aqueles que o assistem.

Referências Bibliográficas

Adorno, T. & Horkheimer, M. Dialética do Esclarecimento. 2ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986.
Marques, Edmilson. Para Interpretar as Produções Cinematográficas. In: Viana, Nildo. Cinema e Mensagem – O Significado Original e o Significado Atribuído ao Filme. No prelo, 2011.
Prokop, D. O Papel da Sociologia do Filme no Monopólio Internacional. In: Filho, Ciro M. (org.). Prokop. São Paulo, Ática, 1986.
Santos, Jean I. Cinema e Indústria Cultural. In: Viana, Nildo (org.). Indústria Cultural e Cultura Mercantil. Rio de Janeiro, Corifeu, 2008.
Souza, Erisvaldo. A Renovação da Teoria da Indústria Cultural em Prokop. In: Viana, Nildo (org.). Indústria Cultural e Cultura Mercantil. Rio de Janeiro, Corifeu, 2008.
Viana, Nildo. A Concepção Materialista da História do Cinema. Porto Alegre, Asterisco, 2009a.
Viana, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre, Zouk, 2007.
Viana, Nildo. Cinema e Mensagem – O Significado Original e o Significado Atribuído ao Filme. No prelo, 2009b.
Viana, Nildo. Como Assistir um Filme? Rio de Janeiro, Corifeu, 2009c.
Viana, Nildo. Para Além da Crítica dos Meios de Comunicação. In: Viana, Nildo (org.). Indústria Cultural e Cultura Mercantil. Rio de Janeiro, Corifeu, 2008.
Artigo publicado originalmente na Revista Possibilidades.


* Este texto é uma adaptação sob a forma de artigo de uma entrevista publicada no seguinte endereço: http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=5175
** Professor da UFG – Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília.
[1] Destacaríamos a obra inaugural da reflexão sobre indústria cultural, de Adorno e Horkheimer (1986) e alguns comentários contemporâneos: Santos (2008); Souza (2008); Viana (2008). Uma das melhores análises, no nível teórico, sobre o capital cinematográfico, é a de Prokop (1986).
[2] Sobre isso, consulte-se Viana (2009b).
[3] Existem também os documentários que ou focalizam aspectos do capitalismo ou apresentam uma concepção mais abrangente. O documentário Surplus, Erik Gandini (Suécia, 2003), por exemplo, coloca em questão o consumismo, apesar de partir de posições questionáveis (o primitivismo), assim como The Corporation, Mark Achbar (Canadá, 2003), que mostra a importância e força das grandes corporações.  Porém, não consideramos que o documentário seja um filme, pois este é uma obra de arte, logo, uma “expressão figurativa da realidade” (Viana, 2007) e por isso, tal como colocamos em outro lugar, não se caracteriza como filme (Viana, 2011).
[4] Este é o caso de vários filmes que são extremamente criticados, tal como Mulher-Gato, Jean Christophe Comar (EUA, 2004), por vários motivos, tal como sua pobreza formal (que, realmente, neste aspecto deixou muito a desejar), etc., mas revelam aspectos importantes da sociedade capitalista, tal como o capital farmacêutico e sua busca do lucro a qualquer custo (Viana, 2009c; Marques, 2011).
[5] Aqui citamos apenas os filmes de faroeste do cinema italiano, mas há filmes como os de John Ford, tal como No Tempo das Diligências (EUA, 1939); Vinhas da Ira (EUA, 1940), Como Era Verde Meu Vale (1941), que fazem parte da tendência de reprodução e crítica intencional do capitalismo.

8 de mar. de 2011

Futebol, Competição e Corrupção em Rudo e Cursi


Futebol, Competição e Corrupção em Rudo e Cursi

Nildo Viana

O filme Rudo e Cursi, "Rude e Romântico", dirigido por Carlos Cuarón (EUA/México, 2008), conta a história de dois irmãos que tinham uma vida precária na zona rural e acabam sendo convidados por um empresário de jogadores para fazer testes em times de futebol profissional. Eles aceitam a acabam se tornando famosos jogadores.

Porém, o filme mostra muito mais que isso. A rivalidade entre os dois irmãos é marcada por apoio mútuo e a superação da condição social é realizada por dois indivíduos que carregam consigo problemas oriundos de sua formação, inclusive sua ingenuidade, o que existe no caso concreto de muitos jogadores de futebol, devido suas origens de classe e formação cultural. Sem ter uma maior compreensão dos problemas na carreira de um jogador e de que o dinheiro não é inesgotável, eles esbanjam (com drogas e jogos ou com carros e mulher) e acabam perdendo tudo.

Rudo demora mas acaba se tornando um goleiro de sucesso, sendo que busca o recorde de mais tempo sem levar gol, enquanto que Cursi chega à seleção mexicana, mas depois disso entra numa fase de declínio e deixa de ser o goleador que era. Além da competição entre os dois irmãos, observa-se a reprodução da sociedade competitiva, expresso na relação de Cursi com uma modelo, que tão logo ele cai em decadência, o troca por outro. O vício em jogo e depois em drogas de Rudo também marca sua decadência ao se endividar e não ter como pagar.

As cenas finais do filme mostram a desonestidade na competição, na proposta de corrupção, algo comum no futebol, num jogo decisivo entre os times de Rudo e Cursi, no qual o primeiro deveria levar gols e deixar o adversário ganhar em troca do dinheiro para pagar sua dívida e salvar sua vida. Um penalti no final da partida marca a definição e um erro de interpretação faz com que ambos percam, pois Cursi perde a chance de se recuperar e Rudo fica com a glória mas leva alguns tiros na perna, que é amputada, e abandona o futebol, bem como o irmão. Do sucesso ao fracasso, apesar disso se reencontram e cantam juntos.


O filme, por conseguinte, mostra problemas que ocorrem com inúmeros jogadores de futebol, pois é comum saírem do interior e das classes desprivilegiadas para conseguirem atuar em times profissionais. Muitos não conseguem muita coisa, e vivem como jogadores reservas, marginais, em pequenos times e com pequenos salários. Outros conseguem relativo sucesso, mas ao não saber trabalhar com o dinheiro que ganham, logo entram em decadência financeira. Muitos, na onda do sucesso, atraem mulheres belas e oportunistas, etc. No fundo, é a sociabilidade capitalista que é mostrada no filme, com suas especificidades no caso da profissão de jogador de futebol. O filme mostra, também, o mundo competitivo e mercantil existente, o processo de corrupção no futebol e que todos visam ganhar em torno do jogador (no caso do filme, os técnicos e empresários). A corrupção no futebol profissional fica explícita, sendo mais uma manifestação dessa sociabilidade marcada pela competição, mercantilização e burocratização, onde o valor dominante que aponta para ganhar supera os demais.

Enfim, a história de Rudo e Cursi é a história de dois jogadores que se encaixaria bem na vida de milhares de outros jogadores de futebol profissional e revelam faces da sociabilidade capitalista e da mentalidade burguesa, na qual os valores dominantes reinam absoluto.

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"A Grande Ilusão" ou A Política Como Ela É

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"A Grande Ilusão" ou A Política Como Ela É

Nildo Viana

O filme "A Grande Ilusão"/All the King's Men* (Steven Zaillian, Alemanha/EUA, 2006) narra uma história que é bastante comum na política institucional cotidiana. O filme é baseado no romance de Robert Penn Warren, All the King's Men*, publicado em 1946, o que mostra o "eterno retorno do mesmo na política institucional" [1]. Este filme é um remake de A Grande Ilusão (Robert Rossen, EUA, 1949), que já tinha ganhado uma refilmagem em 1957 (Sidney Lumet, EUA, 1957).

O filme conta a história de Willie Stark, um interiorano de Louisiana, Estado norte-americano predominantemente rural nos anos 1940, que questiona as autoridades locais, acusando-as de corrupção e dos perigos de uma reforma numa escola de caráter duvidoso. Quando a escola desaba e mata algumas crianças, Willie Stark chama a atenção e logo consegue popularidade. Em breve ele é jogado nas eleições, quando um dos candidatos manipula para que ele lançe sua candidatura e retire votos do adversário, mais forte junto ao "caipiras" e pequenos fazendeiros. Nesse processo, um jornalista se interessa pelos discursos a favor da honestidade de Willie Stark e faz matérias sobre ele, tornando-o conhecido nas grandes cidades. Ao descobrir a manipulação, Stark mantém sua candidatura de forma independente e alcança sucesso eleitoral, sendo eleito governador. Passa a falar aos "caipiras" como ele com um discurso eleitoral [2] para agradar esse público. Porém, suas atitudes começam a mudar, desde sua relação familiar até políticas. Stark acaba usando os mesmos procedimentos daqueles que ele criticava, entre elas abuso do poder, chantagens, etc. A sua concepção é a de que do mal emerge o bem. Nesse contexto, o jornalista e a família Staton acaba sendo envolvida nas tramas políticas do novo governador e a resolução da trama termina em morte.

O romance que inspirou o primeiro filme e os demais, se inspira na ascensão e queda de Huey Pierce Long, conhecido com o "infame Kingfish", que ocupou o cargo de senador e governador de Louisiana. O filme de 1949 mostra com mais clareza a corrupção de Willie Stark do que a versão aqui comentada, de 2006 (abaixo trailer do filme).



No fundo, o que o filme faz é mostrar "a politica como ela é", para parafrasear Nélson Rodrigues. O processo de corrupção, ambição, luta pelo poder e todos os elementos constituintes da luta política institucional, estão presentes e revelam aquilo que muitos não percebem ao apenas ouvir os discursos ou ver o que é repassado pelos meios oligopolistas de comunicação. Também mostra, o que não é novidade para nenhum brasileiro atento, que os indívíduos de origem humilde se corrompem com a mesma facilidade que qualquer outro. Como já dizia Robert Michels [3], os partidos políticos são criadores de novos burocratas e políticos profissionais, e recruta grande parte deles nas classes exploradas. Assim, o filme é uma verdadeira aula do que é a política institucional, o processo eleitoral e os governantes.


Notas:

* "Todos os Homens do Rei"

[1] - VIANA, Nildo. Eleições e Perspectivas: Eterno Retorno do Mesmo ou Transformação Social?. Revista Espaço Acadêmico (UEM), v. 10, p. 55-63, 2010.
 
[2] - VIANA, Nildo. Do Discurso Eleitoral ao Discurso Governamental. In: http://informecritica.blogspot.com/2011/02/do-discurso-eleitoral-ao-discurso.html Acessado em: 04/02/2011.

[3] - MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília, UnB, 1981.


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27 de fev. de 2011

O Imperio do Dinheiro em "Ambição em Alta Voltagem"

"Ambição em Alta Voltagem" de quem criou o título na versão brasileira...

O Imperio do Dinheiro em 
"Ambição em Alta Voltagem"

Nildo Viana


O título do filme no Brasil ficou sendo "Ambição em Alta Voltagem" (Allen e Albert Hughes, EUA, 1995), um título comercial que busca ser atrativo mas que não tem relação com o verdadeiro conteúdo da obra, sendo apenas mais um título problemático (Viana, 2009). Este filme dos Irmãos Hughes abre espaço para refletir sobre várias questões sociais, entre elas o poder do dinheiro, a questão racial, a guerra do Vietnã, etc. O título original é mais fiel ao conteúdo: "Dead Presidents", que pode ser traduzido por "presidentes mortos". Sem dúvida, o título não ajuda a compreender o conteúdo caso não se preste atenção na cena inicial, até mesmo  no caso dos assistentes dos Estados Unidos e mais ainda do Brasil e resto do mundo. A cena inicial mostra várias cédulas de dólares queimando. Claro que muitos sabem que as cédulas possuem as figuras de ex-presidentes dos Estados Unidos, inclusive Abraham Lincoln, o mais conhecido no Brasil devido sua exploração em filmes e desenhos. Os presidentes mortos são as figuras das cédulas e representam o dinheiro e seu caráter mórbido e necrófilo. 

O filme não retrata nenhuma ambição desmedida, como parece indicar o título da versão brasileira, e sim o dilema de alguns personagens, especialmente o personagem principal, Anthony Curtis, que não é parente do famoso ator Tony Curtis, como lhe pergunta um açougueiro e ele demora a entender. Curtis é um jovem que quer fazer "algo diferente" e sua falta de ambição é demonstrada ao preferir ir para a guerra do Vietnã ao invés de ir para a Universidade, como seu irmão, para obter sucesso. A mãe de Curtis fica descontente, mas o pai apoia (serviu ao exército também). Curtis vai para a guerra, e sendo negro, tem um amigo que sempre lhe dizia que aquela era uma guerra de brancos, embora acabe indo também. 

Depois de voltar da guerra se encontra desempregado, com uma filha e esposa para cuidar. Acaba se empregando num açougue e um ex-namorado (durante a guerra) que visita sua namorada e filha enquanto ele estava fora, é o seu grande problema, principalmente quando o açougue fecha e fica novamente desempregado e tem que conviver com a cobrança da mulher, que recebe dinheiro do ex-amante. Isso provoca sua ira e aliança com antigos amigos (um pastor que esteve na guerra e guardava uma cabeça de vietcong como "amuleto de sorte"; dois amigos de antes da ida e que foram com ele e se tornaram viciados em droga - um sendo o único branco do bando, um dono de bar que tinha negócios ilícitos fechados e uma militante do movimento negro radical e irmã de sua esposa) e planeja com eles um assalto a um carro-forte. Na tentativa de assalto, dois dos assaltantes (a militante e o viciado branco) e vários policiais morrem. 

Os quatros que restaram repartem o dinheiro entre si, mas o pastor acaba esbanjando seu dinheiro e sendo descoberto pela polícia, o que leva a todos os demais que encontra o viciado negro morto por overdose e prendem os demais. Curtis é julgado e condenado à prisão perpétua, o que lhe faz jogar uma cadeira no juíz e reclama de ter arriscado a vida e ajudado na guerra por nada (o advogado argumentara, em seu favor, não só isso como sua situação precária de vida, o que o juiz retrucou dizendo que também serviu durante a Segunda Guerra Mundial e que ele envergonhava o exército).

Neste contexto, o dinheiro é a mola mestra do filme, é por causa dele que Curtis resolve assaltar um carro chefe, bem como seus companheiros e é isso que tem valor - no sentido de ser importante, significativo, para os indivíduos de uma sociedade mercantil e coisificada (Viana, 2007). É graças a ele que policiais e assaltantes morrem e outros são destruídos e prejudicados. É o império do dinheiro que diz quem é a pessoa, o seu "valor", como ela vive, suas relações sociais e amorosas, etc. E é ele que gera a criminalidade, destrói vidas, corrompe. Mas o império do dinheiro é expressão de relações sociais, relações capitalistas, que criam uma sociabilidade fundada na competição, mercantilização e burocratização (Viana, 2008), que, por sua vez, gera pobreza, desigualdade, racismo, etc. A sociedade do dinheiro é a sociedade da desumanização e isto o filme mostra bem.

Referências:

VIANA, Nildo. Como Assistir um Filme? Rio de Janeiro, Corifeu, 2009.
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasilia, Thesaurus, 2007.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. São Paulo, Escuta, 2008.

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26 de fev. de 2011

A Importância da Cena Final



Abaixo o texto "A Importância da Cena Final",publicado originalmente na Revista Critério.

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A Importância da Cena Final - Nildo Viana

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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo . A Importância da Cena Final. Revista Critério, v. 07, p. 05, 2007.

19 de fev. de 2011

O Cinema Segundo Walter Benjamin


O Cinema segundo Walter Benjamin

Nildo Viana



Walter Benjamin apresentou uma visão do cinema destoante da concepção da maioria dos integrantes da chamada “Escola de Frankfurt”, principalmente Teodor Adorno. Nosso objetivo aqui não é fazer um confronto entre as duas posições e nem confrontar ou comparar as teses benjaminianas com a de outros pensadores, mas tão-somente analisar a concepção deste autor e fazer uma análise crítica dela, o que, eventualmente, poderá nos levar a citar autores com posições distintas.

A concepção benjaminiana de cinema é derivada de sua concepção de meios de comunicação de massas, que ele aborda a partir de sua discussão sobre a “reprodutibilidade técnica” (Benjamin, 1994). Benjamin parte de uma determinada interpretação de Marx para apresentar sua tese fundamental:


“Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, esse modo de produção ainda estava em seus primórdios. Marx orientou suas investigações de forma a dar-lhes valor de prognósticos. Remontou às relações fundamentais da produção capitalista e, ao descrevê-las, previu o futuro do capitalismo. Concluiu que se podia esperar desse sistema não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para sua própria supressão” (Benjamin, 1994, p. 165).

A citação deixa claro o caráter problemático da interpretação benjaminiana de Marx, passível de inúmeras críticas, inclusive a transformação do autor de O Capital em futurólogo, enquanto que, na verdade, Marx analisou as tendências do desenvolvimento capitalista, através de suas contradições. E é justamente na não percepção das contradições que temos o grande problema da análise adorniana e benjaminiana, tal como colocaremos adiante.

Deixando de lado os limites da interpretação benjaminiana de Marx, passemos para o elemento fundamental que ele extrai da obra deste autor para construir seu edifício analítico do cinema. Aqui temos o problema da interpretação benjaminiana do que significa “criação de condições para sua própria supressão”. É claro que esta tese está em Marx, mas não exatamente desta forma. No entanto, aqui está uma visão de que o capitalismo cria suas condições de supressão, inclusive a tecnologia. Em outras palavras, ele considerava que “o capitalismo lançava as sementes de sua própria destruição, ao criar as condições que possibilitariam sua abolição” (Stam, 2003, p. 84).

Segundo Benjamin, as mudanças no modo de produção demoram para chegar à superestrutura, já que esta se desenvolve mais lentamente. Ele enfatiza a reprodutibilidade técnica para discutir a questão da obra de arte, elemento da superestrutura. Segundo ele:


“Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas como intensidade crescente” (Benjamin, 1994, p. 166).

Benjamin cita a xilogravura como exemplo que acaba sendo um prenúncio de outras formas mais desenvolvidas, tal  como a litografia, e, posteriormente, a fotografia. O cinema falado, segundo ele, estava “contido virtualmente na fotografia”. A reprodução técnica do som a partir do século 19 e foi se aperfeiçoando até promover “transformações profundas” até conquistar um lugar ao sol no mundo da produção artística.

Este processo destrói a autenticidade da obra de arte. A reprodutibilidade técnica desfaz sua autenticidade, seu caráter único e original. Benjamin relaciona autenticidade e tradição, colocando que a primeira é a quintessência da segunda.


“O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias. Seu agente mais poderoso é o cinema” (Benjamin, 1994, p. 168-169).

A destruição da aura, o desvelar do invólucro do objeto, é produto da reprodução técnica, tal como exemplificado pelo cinema.


“Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme. O filme é uma criação da coletividade” (Benjamin, 1994, 172).

Assim, cinema e reprodutibilidade técnica são inseparáveis. Tanto em sua produção quanto em sua reprodução, a técnica está presente no cinema. Segundo Benjamin, a discussão sobre se o cinema é arte parte de uma perspectiva superficial, pois não se discute a questão prévia de que “se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte”.  É a partir destas considerações que Benjamin vai buscar repensar o cinema como arte. Ele parte da comparação entre fotografia e filme para demonstrar o caráter artístico da produção cinematográfica:


“Fotografar um quadro é um modo de reprodução; fotografar num estúdio um acontecimento fictício é outro. No primeiro caso, o objeto reproduzido é uma obra de arte, e a reprodução não o é. Pois o desempenho do fotógrafo manejando sua objetiva tem tão pouco a ver com a arte como o de um maestro regendo uma orquestra sinfônica: na melhor das hipóteses, é um desempenho artístico. O mesmo não ocorre no caso de um estúdio cinematográfico. O objeto reproduzido não é mais uma obra de arte, e a reprodução não o é tampouco, como no caso anterior. Na melhor das hipóteses, a obra de arte surge através da montagem, na qual cada fragmento é a reprodução de um acontecimento que nem constitui em si uma obra de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado” (Benjamin, 1994, p. 178).

Benjamin coloca então que os aspectos não-artísticos reproduzidos no filme se encontram na forma específica que o ator cinematográfico realiza a representação do seu papel. O ator cinematográfico se encontra numa situação e realiza uma prática bastante distinta do ator de teatro. O ator de teatro se encontra diante de um público, enquanto que o ator cinematográfico se apresenta diante de um grupo de especialistas (diretor, produtor, técnicos, etc.) e que possui o direito de intervir. Tal intervenção assume o papel típico da execução de um teste. As cenas são filmadas variadas vezes, sob formas diferentes. O montador irá escolher uma das suas variantes em detrimento de outras. Mas trata-se de um teste diferenciado do que ocorre em outras esferas (profissional, esportiva), pois o ator cinematográfico não está diante do público mas sim de um aparelho (a câmera) e o diretor ocupa um espaço semelhante a de um examinador em um teste profissional.

A auto-alienação expressa na representação do homem no aparelho revela uma “aplicação altamente criadora”. O ator cinematográfico se encontra numa situação de estranheza diante do aparelho e isto pode ser transferido para as telas, podendo ser vista pela massa, que irá controlá-la. A invisibilidade da massa para o ator reforça este controle. Assim, Benjamin coloca sua posição: a arte contemporânea deverá se orientar mais para a reprodutibilidade e menos para a obra original para ser mais eficaz. O uso político do controle da massa sobre o ator ocorrerá com o fim do capitalismo, já que no contexto atual o capital cinematográfico impede tal processo, pois dá um caráter contra-revolucionário a ele, promovendo, inclusive, o “culto do estrelato”.

O passo seguinte de Benjamin é a defesa do “direito de ser filmado”. Tal direito seria de todo mundo e todos devem exigir isto. Ele chega a afirmar que a diferença entre autor e público está em vias de desaparecer. Ele cita o exemplo do escritor. Está aumentando o número de escritores e o leitor já está pronto para se transformar em escritor. A competência literária passa a ter sua base na formação politécnica e não na educação especializada. Isto já está em estágio adiantado no cinema. Benjamin cita o exemplo do cinema russo, no qual o direito de ser filmado já está praticamente concretizado. Na Europa, o capital cinematográfico dificulta e atrasa este processo.

O cinema mantém uma relação indissolúvel com a realidade. Através do aparelho, a câmera, o cinema penetra no âmago da realidade:


“A natureza ilusionística do cinema é de segunda ordem e está no resultado da montagem. Em outras palavras, no estúdio o aparelho impregna tão profundamente o real que o que aparece como realidade ‘pura’, sem o corpo estranho da máquina, é de fato o resultado de um procedimento puramente técnico, isto é, a imagem é filmada por uma câmara disposta num ângulo especial e montada com outras da mesma espécie” (Benjamin, 1994, p. 186).

A descrição cinematográfica da realidade, segundo Benjamin, é, devido a isto, muito mais significativa do que a pictórica para o homem moderno. A reação da massa diante da arte é modificada na sociedade moderna. A reprodutibilidade técnica provoca esta transformação. A massa era retrógrada diante de Picasso mas se torna progressista diante de Chaplin. Ao contrário da pintura, que deveria ser apreciada por uma ou poucas pessoas, o cinema deve ser apreciado por uma coletividade, e as reações dos indivíduos são condicionadas pelo caráter coletivo delas, não somente a soma das reações individuais mas pelo seu controle mútuo.

O cinema tem como função social das mais importantes promover o equilíbrio entre o homem e o aparelho. As imagens provocam efeitos na percepção dos atos cotidianos. Os gestos, incluindo o de pegar uma colher ou um isqueiro, são familiares, mas não sabemos nada sobre as elaborações psíquicas contidas neste processo. No entanto, através da câmera e seus recursos, a montagem pode provocar imersões, emersões, interrupções, isolamentos, extensões, acelerações, ampliações, miniaturizações, abrindo, pela primeira vez, para nós, a “experiência do inconsciente ótico”, assim como a psicanálise revelou o inconsciente pulsional.


“Muitas deformações e estereotipias, transformações e catástrofes que o mundo visual pode sofrer no filme afetam realmente esse mundo nas psicoses, alucinações e sonhos. Desse modo, os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do pública se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador. (...). Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico –, percebemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. (...). A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente” (Benjamin, 1994, p. 190).

O filme com a sucessão de imagens não permite a contemplação, o movimento delas interrompe a associação de idéias. Daí Benjamin extrai o que ele denomina “efeito de choque” do cinema, o que provoca uma “atenção aguda”. O aparelho perceptivo do homem contemporâneo atravessa profundas mudanças, tanto do ponto de vista do indivíduo que enfrenta o tráfego quanto aquele que combate, em escala histórica, a ordem social vigente.

Benjamin passa a contestar a oposição que se faz entre as massas, que buscariam na obra de arte apenas a distração e o conhecedor o recolhimento. A massa, segundo Benjamin, é possui uma nova atitude diante da obra de arte. Com ela, “a quantidade  converteu-se em qualidade”. Benjamin critica a posição contrária esclarecendo o que seria distração e recolhimento:


“A distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segunda a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo” (Benjamin, 1994, p. 193).

Benjamin diz que a arquitetura é uma obra de arte que é exemplar para discutir a questão da distração. Desde a pré-história a arquitetura está presente com os edifícios, enquanto que outras formas de arte surgiram e desapareceram, fazendo de sua história a mais ampla do que qualquer outra obra de arte. Os edifícios podem ser percebidos tanto pelo uso quanto pela percepção, ou seja, por meios óticos ou por meios táteis. Segundo o modelo do recolhimento, é impossível compreender tal recepção em sua especificidade. Na recepção tátil, não há nada semelhante que na recepção ótica se chama contemplação. A recepção tátil se realiza mais pelo hábito do que pela atenção. O hábito, na arquitetura, determina a recepção ótica, em grande medida. Ela ocorre por uma observação casual de início. Assim, conclui Benjamin, o aparelho perceptivo não pode ser compreendido apenas pela perspectiva ótica, pela contemplação. É preciso perceber, ainda segundo ele, o papel da recepção tátil, através do hábito.

No entanto, acrescenta Benjamin, o distraído pode habituar-se. Quando realizamos certas tarefas de forma distraída é devido ao fato de que elas se tornaram um hábito.


“A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado. E aqui, onde a coletividade procura a distração, não falta de modo algum a dominante tátil, que rege a reestruturação do sistema perceptivo. É na arquitetura que ela está em seu elemento, de forma mais originária. Mas nada revela mais claramente as violentas tensões de nosso tempo que o fato de que essa dominante tátil prevalece no próprio universo da ótica. É justamente o que acontece no cinema, através do efeito de choque de suas seqüências de imagens. O cinema se revela assim, também desse ponto de vista, o objeto atualmente mais importante daquela ciência da percepção que os gregos chamavam de estética” (Benjamin, 1994, p. 194).

Esta breve exposição da visão benjaminiana do cinema deixa claro o ponto de vista do autor. Ele se distingue das demais posições da chamada Escola de Frankfurt e isto no que se refere especificamente ao problema da cultura e do cinema, embora também em outros pontos, que aqui não nos interessam diretamente. Sua posição diante do cinema e da arte é radicalmente oposta à posição de Adorno e isto envolvia inúmeras outras questões, entre as quais a questão da tecnologia, ressaltado por Benjamin em sua análise da “reprodutibilidade técnica”.


“Benjamin destacou as possibilidades abertas pela tecnologia e as conseqüências positivas desta percepção modificada (especialmente a dessacralização), enquanto que Adorno (...), apontou as conseqüências negativas e as deficiências ali presentes. Para o primeiro, um salto qualitativo para frente; para o segundo, para trás” (Kothe, 1978, p. 37).

Stam também destaca esta oposição entre ambos os autores e vê as origens anteriores na visão do cinema de ambos, os conservadores como Duhamel que tinha posições semelhantes a Adorno e os “apólogos da cultura de massa”, com posições idênticas a de Walter Benjamin (Stam, 2003). A posição de Adorno é marcada por uma visão elitista de arte e que carrega em si alguns equívocos e que possuem o seu par antagônico em Walter Benjamin, que traz no seu bojo uma ingênua idealização da classe trabalhadora (Stam, 2003). Um idealiza “as massas”, o outro as desconsidera. A posição dos dois autores, no entanto, em que pese querer, em certos momentos, se aproximar do marxismo, é claramente não-marxista. Claro que aqui não é o objetivo analisar a relação destes dois autores com o marxismo, mas precisamos comparar a posição de Benjamin com esta teoria, mesmo porque muitos defendem o seu caráter de análise marxista e ele inicia seu texto a partir de uma citação de Marx.

Iremos recapitular as teses benjaminianas sobre cinema para questionar suas conclusões. O primeiro aspecto ressaltado por Benjamin é o fato de que o capitalismo cria as condições de sua própria superação. Quando Marx colocava que a burguesia criava o seu próprio coveiro, estava se referindo ao proletariado enquanto classe social revolucionária e não a tecnologia, embora esta fosse condição de possibilidade do comunismo, mas não em si ou de forma auto-suficiente. O desenvolvimento tecnológico, por si mesmo, não geraria uma nova sociedade e nem deveria ser considerado revolucionário. Isto só é possível destacando a relação entre tecnologia e relações sociais, postura que possui alguns trechos da obra de Marx que parecem confirmar mas que outros trechos e análises mais profundas demonstram o equívoco desta tese.

Aqui está a raiz ideológica de todos os equívocos de Benjamin. A sua tese da reprodutibilidade técnica que rompe com a aura e com a idéia da autenticidade, tem sua fonte neste postulado sobre a tecnologia. Benjamin não percebe que a reprodutibilidade técnica não se dá de forma neutra e que não pode, portanto, ser utilizada por qualquer um em qualquer posição social. A tecnologia se desenvolve tendo por base determinadas relações sociais e de acordo com seu processo de produção e reprodução. Na sociedade capitalista, as relações de produção capitalistas promovem determinado desenvolvimento das forças produtivas (e não um desenvolvimento benéfico e adequado a qualquer relação social).

Embora Marx tenha em determinados trechos de sua obra distinguindo o uso das máquinas e postulado uma certa neutralidade nelas, tal como quando afirma que “a pólvora continua a ser pólvora, quer se empregue para produzir feridas, quer para estancá-las” (Marx, 1989, p. 210), ele também colocou que “a utilização das máquinas é uma das relações do nosso regime econômico contemporâneo” (Marx, 1989a, p. 209), o que quer dizer que o uso da tecnologia está indissoluvelmente ligado ao modo de produção capitalista. Além disso, Marx, a partir de 1863, quase vinte anos depois, complexificou sua posição diante do desenvolvimento da maquinaria (Marx, 1989b). Porém, independentemente das teses de Marx, a tecnologia é produzida socialmente e para reproduzir as relações sociais que estão em sua base e, portanto, não é emancipadora por si mesma.

Mas, independente disso, a interpretação benjaminiana de Marx comete o equívoco de considerar que a tecnologia é potencialmente revolucionária, e, por conseguinte, o cinema também o seria. O mesmo que se pode dizer, na perspectiva de Marx, sobre a tecnologia, se pode dizer do proletariado: no seu estágio atual, antes de desenvolver sua consciência revolucionária através das lutas de classes, ele é uma “classe em-si” e, portanto, sem consciência revolucionária. O endeusamento messiânico das massas por Benjamin revela apenas um romantismo que provoca uma cegueira em relação às relações sociais reais.

Aqui também se encontra a chave para se compreender as abstrações metafísicas de Benjamin. Ele não analisa o cinema concretamente e basta ver que apenas cita alguns cineastas em algumas passagens, sem se debruçar mais detalhadamente, Charles Chaplin e uma passagem sobre o cinema russo, além de citar Abel Gance (não sua produção cinematográfica, mas seus escritos sobre cinema). Para quem assume uma visão tão apaixonada pelo cinema e defende seu caráter progressista, o mínimo que se poderia esperar seria uma análise, ou pelo menos algumas referências, sobre a história do cinema, uma análise de suas produções, sobre seu caráter, as obras cinematográficas que comprovam suas afirmações, etc.

Aqui também encontramos as razões para outro equívoco benjaminiano, que é a suposta destruição da aura pelo advento do cinema. A “aura” não é destruída pela reprodutibilidade técnica mas apenas muda de forma. A própria concepção de aura em Benjamin é questionável e padece de um certo anacronismo, já confunde arte moderna e formas pré-capitalistas de “arte”, que não são “arte propriamente dita”, tal como coloca Marx (1986). É justamente na sociedade moderna que algo parecido (e somente parecido, pois a abordagem benjaminiana é muito abstrata e fundada em comparações com épocas passadas ao invés de se basear nas relações sociais concretas) com o que Benjamin denomina aura é o que o sociólogo Pierre Bourdieu denominou illusio, ou fetichismo da arte (Bourdieu, 1996). Porém, Bourdieu nota seu nascimento justamente na sociedade moderna, derivado do processo de especialização gerada pela divisão social do trabalho, tal  como antes dele Marx e Weber (Viana, 1999). No entanto, as teses destes autores se fundam nas relações sociais concretas e não em abstrações metafísicas. Vários colocaram justamente o contrário a Benjamin (Stam, 2003), pois o surgimento do estrelato, para citar um exemplo, revela isto.

Além disso, o suposto direito de todos serem filmados é mais uma fantasia de Benjamin do que uma realidade. Sem dúvida, ele cita o cinema russo no qual isto ocorre e se tivesse vivido um pouco mais teria o exemplo do neo-realismo cinematográfico italiano, exceções derivadas de condições sociais históricas bem precisas. São justamente as condições sociais que Benjamin deixa de lado, ou o que Prokop (1986) denomina “condições estruturais”.

Aqui se revela um problema metodológico em Walter Benjamin, a ausência da categoria de totalidade. Benjamin isola o cinema e neste isolamento fantástico deriva seu caráter revolucionário por si mesmo. O processo de produção do filme, que ele cita, inclusive colocando o alto valor monetário envolvido nele, mas desconsidera. Cita o capital cinematográfico, mas desconhece e desconsidera seus efeitos sobre o filme, a começar da busca incessante de lucro, o que provoca o nascimento dos filmes comerciais e que a produção deve estar voltada para o sucesso de bilheteria em detrimento de uma mensagem crítica, contestadora, etc. É por isso que Benjamin não discute o conteúdo dos filmes mas apenas seu caráter revolucionário. Ele não consegue perceber o caráter do capital cinematográfico, marcado pela acumulação de capital e, por conseguinte, pelo processo de centralização e concentração do capital, isto é, pela formação dos oligopólios, muito bem analisada por Prokop (1986). Por isso ele pode postular um cinema como tecnologia revolucionária e desconsiderar os agentes concretos, reais, históricos, os seres humanos que realizam a produção cinematográfica e, por conseguinte, seus objetivos, valores, cultura, etc. e a técnica ganha primazia sobre os seres humanos. Assim, ele realiza o fetichismo da tecnologia. Sob este último aspecto, Adorno já havia levantado várias críticas:


“Em uma série de respostas epistolares aos ensaios de Benjamin, o teórico crítico da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, acusou-o de um utopismo tecnológico que a um só tempo fetichizava a técnica e ignorava o seu alienante funcionamento social na realidade. Adorno foi bastante cético com respeito às afirmações de Benjamin sobre as possibilidades emancipatórias dos novos meios e formas culturais. A celebração benjaminiana do cinema como um veículo para a consciência revolucionária, para Adorno, ingenuamente idealizava a classe trabalhadora e suas aspirações pretensamente revolucionárias” (Stam, 2003, p. 86).

Sem dúvida, apesar de sua posição elitista e determinista, Adorno, aqui, vai mais longe do que Benjamin. O cinema não é potencialmente revolucionário, pois está envolvido até o pescoço com a sociedade capitalista, é mais um elemento para sua reprodução e permanência, do ponto de vista cultural, e, do ponto de vista geral, é apenas mais um espaço de ação de indivíduos especializados, profissionais, produzindo mais uma mercadoria cultural, o filme. É claro que, ao contrário do que pensa Adorno, existem brechas, contradições, e, por conseguinte, o cinema não é apenas conservador, possui potencialidade contestadora, mas marginal e que manifesta através destas frestas abertas por um processo social contraditório, marcado pela luta de classes e seus efeitos no conjunto das relações sociais.

A discussão sobre o caráter artístico ou não do cinema é apenas reflexo das ideologias cinematográficas da época, pois estas pretendiam fornecer o status de arte para o cinema, revelando valores de determinado grupo social, aqueles envolvidos na produção cinematográfica. O próprio Benjamin sucumbiu a idéia de “aura” que ele mesmo criticava, pois sua noção de arte como algo sublime, e o cinema seria sua expressão mais acabada, revela apenas sua excessiva valoração deste fenômeno social.

Não deixa de ser cômica a sua tese de que a massa controla o ator cinematográfico. Esta tese extremamente extravagante não tem nenhuma base real, concreta. Quem controla o ator cinematográfico é o diretor e a equipe de produção. A “massa” só vê o ator depois do filme pronto e, por conseguinte, a fantasiosa idéia de que ela controla o ator é mais uma criação fictícia de Benjamin. O controle “subjetivo” feito pelas massas já que o ator está diante de um aparelho (a câmera) é uma dedução de Benjamin que não se sabe de onde ele a tirou (porquanto não fez entrevistas com os atores, os únicos que poderiam confirmar isto), e tal visão do ator é algo pouco provável, mas que sem uma pesquisa não se ultrapassa o nível hipotético.

A sua reflexão sobre a apresentação da auto-alienação não pode ser atribuída a uma percepção do público, pois este não é um intérprete benjaminiano. Benjamin parte de uma visão homogeneizadora do público e não discute como este possui a percepção do que ocorre nas telas, que é sua forma de acesso ao filme. Em primeiro lugar, trabalha com a idéia metafísica de que o público é composto pelas “massas”, e nem percebe o caráter problemático e ideológico desta expressão. Depois santifica romanticamente estas massas e o passo seguinte é projetar sua análise pessoal como sendo a visão típica das próprias “massas”. Ele se esquece de que, assim como o filme e seus produtores, não são um todo homogêneo, da mesma forma não são as “massas”. A percepção crítica de um filme depende do nível do desenvolvimento da consciência das diversas classes sociais existentes na sociedade e, em geral, “as idéias dominantes são as idéias da classe dominante” e, por conseguinte, a criticidade ou percepção da alienação que Benjamin vê nas “massas” é algo raro, que somente em sua ideologia se torna possível, principalmente devido ao fato que tal criticidade do filme é também inexistente na maioria dos casos.

A idéia benjaminiana de que o cinema penetra no âmago da realidade é outro elemento problemático. Em primeiro lugar, seria necessário discutir o que se entende por “realidade”. Não se pode dizer que se trata de uma concepção empiricista, pois assim isto nada iria querer dizer, embora Benjamim, ao falar de “real” e “realidade” que são “impregnados pelo aparelho” deixa transparecer tal postulado. Mas ele vai além disto ao colocar o papel da montagem, no qual o meramente empírico é transformado, provocando imersões, emersões, interrupções, isolamentos, etc. e com isso abre para o público, pela primeira vez, a experiência do “inconsciente ótico”. Aqui temos duas questões para discutir: a questão da montagem e a do inconsciente ótico.

A questão da montagem teve várias abordagens no interior das discussões cinematográficas no início do século 20. Benjamin não cita nenhuma delas e por isso fica difícil identificar sua concepção de montagem. No entanto, sua referência elogiosa ao cinema russo e sua passagem que aborda o papel da montagem o aproxima da concepção de montagem de Sergei Eisenstein. Eisenstein elaborou sua tese da montagem a partir da influência da psicologia de Pavlov, o ideólogo dos “reflexos condicionados”. Eisenstein se inspirava na psicologia pavloviana e sua tese de que “seria possível controlar e mesmo determinar reações conscientes e, à primeira vista, voluntárias, mercê de estímulos e condicionamentos nervosos apropriados” (Ramos, 1982, p. 23). A partir deste pressuposto, Eisenstein vão erigir um conjunto de procedimentos voltados para várias formas de montagens. Dentre estas formas de montagem se destaca a montagem intelectual, na qual, segundo Ramos, não entra em “consideração a cultura do espectador no seu processo de relacionação/compreensão de um filme” (Ramos, 1982, p. 25). Ele desconsidera a cultura anterior do público, que é fundamental para entender sua recepção e interpretação do filme, bem como as divisões sociais no seu interior, o que é posicionamento semelhante ao de Benjamin.

A outra questão se refere ao “inconsciente ótico”. Ele compara este suposto inconsciente com o que ele chama “inconsciente pulsional” da psicanálise. O inconsciente, na perspectiva freudiana e na maioria das tendências psicanalíticas, é um conceito ligado aos desejos reprimidos e se refere à totalidade da experiência humana. O recalcamento é fundamental para se explicar o inconsciente, pois sem aquele, este não existe. Um tal inconsciente ótico é apenas mais uma invenção benjaminiana abstrata, sem nenhum referente material na vida real. Tanto é que ele nem se desdobrou para explicar tal fenômeno, que seria, caso existisse concretamente, de suma importância. É possível pensar que o “inconsciente ótico” seria um “sonho coletivo” produzido pela montagem cinematográfica, mas isto seria algo pouco provável, pois a intenção do cineasta e sua montagem não coincidem, na maioria das vezes, com o do público, que realiza a interpretação e a partir de sua cultura e posição social. Neste caso, apesar de tão equivocado como nos outros, o termo “inconsciente ótico” nada esclarece, apenas obscurece. Não é uma questão ótica, embora acessível pelos olhar do público em relação às imagens do filme. Também não é “inconsciente”, pois é um processo da percepção e não da totalidade da mente humana.

Na verdade, a montagem não penetra no âmago da realidade, apenas reorganiza esta realidade e na maioria das vezes de forma ilusória, de acordo com as idéias, valores, interesses, dos quais os seus produtores são portadores.

Mais problemática ainda é sua afirmação de que os “filmes grotescos” permitem uma apropriação coletiva dos modos de percepção individual do sonhador ou do psicótico e pode produzir “uma explosão terapêutica do inconsciente”. Esta é uma forma de justificar sua apologia do cinema no caso dos filmes grotescos, muito mais constantes do que os filmes de Chaplin e do cinema russo. Do ponto de vista psicanalítico, é possível se pensar que os filmes violentos fazem as pessoas descarregarem sua agressividade de forma imaginária, o que teria efeito de sublimação. No entanto, isto não atinge a todas as pessoas da mesma forma, e o neurótico ou psicótico pode apenas ter um incentivo para concretizar os seus desejos ocultos. Mas, independentemente disto, é preciso não só realizar análise psicanalítica dos filmes mas também dos seus efeitos conscientes, tal como a possível banalização da violência e da agressividade. Uma visão unilateral, tal como a de Benjamin, ajuda mais a ofuscar a análise do cinema do que contribuir para o seu desenvolvimento.

A discussão abstrato-metafísica de Benjamin sobre a distração e o recolhimento, que segundo alguns seriam as formas de percepção do filme pelas massas e pelo conhecedor, respectivamente, é apenas mais um tijolo deste edifício ideológico construído por ele. Não se trata de “distração” e “recolhimento” e sim de evasão e reflexão. Sem dúvida, não apenas Benjamin utiliza distração e sua diferença para evasão é pequena. Mas distração significa sair de algo, que pode ser tanto sair da realidade para se refugiar no filme quanto sair do filme para se atentar à realidade. Sendo assim, a distração seria mais oposta à concentração do que ao “recolhimento” ou reflexão. A evasão significa, por sua vez, significa um desvio, uma fuga, que, no caso, só pode ser da realidade para o filme. O recolhimento ou a contemplação também não se aplica ao caso do público diante do filme. Não se trata de contemplar um edifício, um filme ou seja lá o que for, e sim refletir sobre ele e sobre suas relações com o mundo circundante, seu significado. A única forma de realizar isto é através da reflexão. Quem assisti um filme como evasão foge da realidade e se dissolve no filme, perdendo a capacidade de reflexão para fora do que está lá, e este é o procedimento da maioria do público. Quem assisti um filme como reflexão, busca realizar um processo de análise do seu conteúdo, de sua mensagem, de suas relações com o mundo circundante. Quem realiza a evasão não são necessariamente “as massas”, mesmo porque elas não são homogêneas e quem realiza a reflexão nem sempre são os “conhecedores”, pois além de muitos destes não ultrapassarem o nível da evasão (tal como muitos produtores e outros profissionais da área do cinema), eles também não são homogêneos e nem sempre estão interessados em ultrapassar a aparência dos fenômenos.

Enfim, a abordagem benjaminiana do cinema é bastante problemática por causa de seus pressupostos intelectuais, pois ao invés de abordar a realidade concreta da produção fílmica, ele se refugia num conjunto de abstrações metafísicas que obscurecem muito mais do que esclarecem o fenômeno do cinema. Neste sentido, é preciso ir além de Benjamin e buscar a constituição de uma teoria do cinema em bases reais, concretas, sociais. Este é o caminho que temos para trilhar.

Referências Bibliográficas:

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Marx, K. Tecnologia e Revolução Industrial. In: Fernandes, Florestan (org.). Marx-Engels. História. São Paulo, Ática, 1989b.

Prokop, Dieter. O Papel da Sociologia do Filme no Monopólio Internacional. In: Filho, Ciro Marcondes (org.). Dieter Prokop. São Paulo, Ática, 1986.

Ramos, Jorge Leitão. Sergei Eisenstein. Lisboa, Horizonte, 1982.

Stam, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. Campinas, Papirus, 2003.

Viana, Nildo. A Concepção de Arte em Marx e Weber. Revista Pós – Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais. ICS/UnB, ano III, no 01, 1999.
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Artigo publicado originalmente na Revista Espaço Acadêmico, Ano VI, n. 66, novembro de 2006.